quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O LIVRO DOS HAICAIS

1
Homem bobo: 
corre, concorre, mata.
Vida de lobo.

2
Manhã à mão.
Sol busca o céu.
Glorioso sertão.

3
Busca sem fim.
Pelejo busco e acho
um brilhante sim.

4
Longa obra:
Polir, insistir, descartar:
dizer sem sobra.

5
Para abrir a cabeça, cirurgia.
Para abrir a cabeça, acidente. 
Para abrir a cabeça, livraria.

6
Penetrante atuar.
Um, dois, três.
Ménage à trois.

7
Aquosa jornada.
Ele peleja, labuta.
Quase nada.

8
Incompetente réu:
recebe pronto o verso
e nada de papel.

9
Leio, rondo,
de Gabriel García Márquez,
a triste Macondo.

10
Futebol de garoto.
Garrincha vai, vem.
O gênio é torto.

11
Escancarado, o gol.
Milhões prendem a respiração...
O craque errou.

12
Inevitável ruga.
Será ela, do tempo,
o prêmio ou a rusga?

13
Madrugada serena.
De manhã, acorda o lírio,
agradece a açucena.

14
Mitiga o carinho.
Depois, açula, atenta.
Sou facinho.

15
Orvalho preci(o)so.
De cada gota, bebo
tudo de que preciso.

16
O professor ensina.
A aluna aprende, olha.
Amorosa sina.

17
Tiro certeiro.
Lesada, a medula desiste.
Resiste o guerreiro.

18
Amor, é segredo:
súbito, perder você...
Bobo medo.

19
Chuva mansa.
Vertical, gota a gota,
o universo dança.

20
Calor certeiro.
De repente, chuva; da terra,
bebo o cheiro.

21
Livro bom.
Folheio, cheiro, leio:
acerto o tom.

22
Livro: tato,
audição, visão, paladar
e cheiro nato.

23
Simples cobiça:
ver-me livre, sempre,
de minha preguiça.

24
A vida enguiça.
Enrolo, paro, cedo.
Triste preguiça.

25
Vida escura.
Vem a noite e me cobre
de estrela e ternura.

26
Escuro aqui.
À noite, amo a noite
e a luz de ti.

27
No breu da noite
cintilam o medo, o terror.
Medonho açoite.

28
As horas nuas,
são todas elas
somente tuas.

29
Branca mágoa.
No escuro, os olhos
marejam água.

30
Passe de mágica.
Dobro a esquina, levito:
fada fantástica.

31
Chuva que vai.
Deixa de brinde na goteira
nítido haicai.

32
Bendita fresta.
Sol vem de longe,
faz a festa

33
Exata fenda.
A gala, o charme e o vestido
que a mão desvenda.

34
Encaixe de luva,
meu corpo em tua
formidável vulva.

35
Eu perduro,
desde que esteja sempre
em Porto Seguro.

36
A manhã somente
destrói forte a tristeza
da madrugada inclemente.

37
Amor guloso.
Nos cômodos, suores e roupas.
Na cama, repouso.

38
Nada de marasmo.
Homem teimoso engendra
teimoso quiasmo.

39
Sonora alegria.
Emoção, flor, pele.
No ar, melodia.

40
Pudesse, comporia
luz, harmonia, ritmo
e canora melodia.

41
Céu de anil.
Manhã, beleza, silêncio...
E ninguém vil.

42
Doce chuva.
Lençol, cama e limpeza.
Encaixe de luva.

43
O cão late.
Madrugada de chuva traz
“A letra escarlate”.

44
Canta a cigarra,
chuva cai de leve.
Adorável farra.

45
Úmida alma.
Espero, anseio, temo.
Chuva me acalma.

46
Escrevo; goteira.
Nuvem prova ter
mirada certeira.

47
Chuva de ideias.
Chove suave lá fora.
Doces melopeias.

48
O galo amanhece.
Abro a janela, contemplo.
Muda prece.

49
Convincente prece.
Amanhecer: profusão de beleza
que o silêncio tece.

50
Sangrenta, a terra.
No oceano, há vagas.
Ninguém erra.

51
Tenaz boêmio,
chova ou faça estrela.
À noite, o prêmio.

52
Olhos em livro.
Supero, então, da felicidade,
o exigente crivo.

53
A palavra salva.
Pego papel e encho
a folha alva.

54
À noite, cismo.
A estupidez, o bandido, o medo...
Fundo abismo.

55
“Adeus”, disse.
Partiu, sumiu, voltou.
Inútil crendice.

56
Dobra o sino.
Dobro a esquina, a alegria,
feliz repentino.

57
Vem ideia, 
idéia vai e vem. 
Melíflua colmeia.

58
Melodiosa festa.
Madrugada adentra; escuto
o ressoar da seresta.

59
Dia e noite,
surra, tortura, amedronta.
Infindável açoite.

60
Fazem os gatos
amor, barulho e gatinhos.
Amantes natos.

61
Muita gente.
Soam o ritmo, as cordas.
Viola plangente.

62
Azar no xadrez,
sorte e sucesso com as damas.
Jogo pedrês.

63
Não há dramas. 
Se o jogo é pedrês, 
prefere as damas.

64
O sertão escurece.
Céu, terra... Belezuras.
Natural finesse.

65
Mútuas lérias — 
decidem dar um tempo. 
Amor em férias.

66
Cai o céu.
Gota a gota, cai.
Puro escarcéu.

67
Gotas que compus:
estrelas enchem o céu.
Luzentes anos-luz.

68
Cai a chuva.
Acorda e vira, na terra,
a doce uva.

69
Oralmente simultâneos.
Somos afã e nudez,
linguagem e subterrâneos.

70
O instante fugaz,
quero retê-lo, guardá-lo.
O haicai mo traz.

71
O instante fugaz,
quero retê-lo, guardá-lo.
A fotografia mo traz.

72
Lufada esperta.
Procura, escolhe a saia
e as pernas desperta.

73
Namoro oculto.
Estratagemas, dribles, decoro.
O amor, um vulto.

74
Amorosa fé.
Teu corpo, templo,
minha sé.

75
Fico em cima.
Aço, martelo, bigorna.
Parnasiana rima.

76
Acordo, reluto.
Quanto desisto, morro.
Temporário luto.

77
Recalcitrantes nós.
Nós — eu e você — 
quando a sós.

78
Lê e aguarda.
Leituras, papéis, ideias...
Palavra semeada.

79
Ela fica.
Doa-se, transpira, inspira.
Rima rica.

80
O artista, cedinho,
mede, molda, aguarda:
pão quentinho.

81
Do chato terno,
faço adjetivo e preencho
livre o caderno.

82
O sábado receita
bar, comida, amigos.
Noite perfeita.

83
Triste açude.
Saudade daquela chuva
que caía amiúde.

84
O corpo recita.
Os versos vêm dela.
Linda dita.

85
A palavra exata,
o homem procura, esculpe.
O tempo acata.

86
Silêncio branco — 
nenhuma palavra no sulfite.
Nada arranco.

87
Homem lasso.
A vitória dura um segundo.
Depois, fracasso.

88
Tenho gana.
Em vão — ele tem
a linda Ana.

89
Nada de raças.
Quero apenas gentes,
fornidas massas.

90
Eloquente sim.
Eu sou teu,
e gosto assim.

91
Mundo gigante.
Reparo, escuto, vacilo.
Então, adiante.

92
Mutante raça.
Hoje, nada presta.
Amanhã, graça.

93
Momento ótimo.
A seguir, guinada, susto,
tudo num átimo.

94
Passeio rotundo.
Andei longe; agora,
em casa, o mundo.

95
Doce manha.
Mansamente, chega, sussurra.
E muito ganha.

96
Desenha a linha.
Diverte-se, joga, pula.
A brincadeira: amarelinha.

97
Puxa, estica.
Menino solto no céu — 
livre pipa.

98
Migração repetida.
Tesourinha corta o vento:
hora da partida.

99
Gruta de Maquiné.
Lá, Peter Lund,
escura é a fé.

100
Tenho medo:
ele dorme comigo
e acorda cedo.

101
Íntimo serralho:
cada macaco quebra
seu galho.

102
Doce arrebol.
Faço melodia e arranjo
réstia de sol.

103
Árdua lei:
a isto, que rápido leste,
tempo dediquei.

104
Serpenteado arrebol.
Caminho, contemplo, reverencio.
Caminha o caracol.


105
Peço-te calma.
Pondera: não
vendas tua alma.

106
Paulo lê Minski.
Eu leio Paulo.
Mais um uísque.

107
Chegou a prima.
A notícia é vera.
Brotou uma rima.

108
Onde há fumaça, afago,
feito de pó, açúcar é água.
Assim eu me torno mago.

109
Pra que rima rica?
Estás aqui comigo.
O resto é titica.

110
No futebol, é rapace.
Atrai a bola, que nele gruda.
No futebol, não erra passe.

111
Vi no Youtube.
Súbito, saquei:
maktub.

112
Pirilampo, vaga-lume.
Vago lume, facho sutil.
Luz em baixo volume.

113
A mulher e a palhaça.
Uma não separo da outra. 

São as duas única graça.

114
Folhas, o vento leva. 
Folhas em branco,
a caneta não releva.

115
Em mim estão
o problema e
a solução.

116
Para abrir a cabeça, cirurgia.
Para abrir a cabeça, acidente.
Para abrir a cabeça, livraria.

117
A dor de cotovelo vai embora.
Já o poema, talvez seja útil.
Não jogarei os versos fora.

118
Tornou-se apóstata.
Nenhuma religião 
venceu a aposta.

119
À vida, dar um fim.
Depois, mudou de ideia.
Disse a ela um sim.

120
Sem mas nem porém. 
O que há é sempre mais.
Assim seja: amém.

121
Madrugada; silêncio ativo.
Nesta hora, eu me desponto.
Tens um corpo: sou cativo.

122
Que a casa não caia.
Mais Darcy Ribeiro
e menos Malafaia.

123
Digo: eu faço assim: 
eu leio e eu escrevo. 
Mato, pois, o esplim.

124
Tudo era ócio, 
tudo era prazer. 
Agora é negócio.

125
Não quero placê. 
Não quero placebo. 
Eu quero você.

126
Pipocam os celulares. 
Mas, em feio às festas, 
são poucos os lares.

127
Agulhas apontam para o céu. 
Estoicamente, ela as pisa. 
Não há queixa nem escarcéu.

128
Há dias em que sou desistência.
Envolvo-me, então, com algum livro.
Páginas depois, já sou resistência.

129
Manhã, melodia.
Buscar cedo o
Sol de todo dia.

130
Você querendo me devorar com fervor.
Eu, com vontade, querendo te comer.
O corpo é substância que (se) faz amor.

131
A folha e seu invento:
quando se descola da árvore,
acomoda-se no vento.

132
Teu corpo é paisagem.
Contemplo, exploro, inauguro
tua natureza selvagem.

133
Boçal é o Moro. 
Eu fico mesmo é 
com um oximoro.

134
Enquanto Doria posa de gari, 
embaixo do tapete, a sujeira, 
não importa se lá, acolá ou aqui.

135
Na praia, pelo sal, temperada. 
Escalo tuas elevações. 
Gosto de ti toda molhada.

136
Somos nós, é mito. 
Podemos até perder o fio da meada, 
mas seremos nós, akai ito.

137
Hoje foi dia de façanha. 
Com zelo e com gosto, 
fiz a primeira lasanha.

138
Com, amor, sem alarde. 
Sendo assim, eu convido: 
vem fazer amor à tarde.

139
A Lua sobre Paracatu.
Num céu de estrelas,
o firmamento está nu.

140
A Lua sobre Paracatu.
Meu destino é Brasília.
Deveria ser teu corpo nu.

141
Gosto de tudo que nada,
seja de água doce,
seja de água salgada.

142
Alguma coisa ouço.
Parece voz sofrida
vinda do calabouço.

143
Leio Bob Dylan.
A rodoviária é fria.
Preciso é de lã.

144
O que é a fé?
Quase acho resposta
no gole de café.

145
Deixa de ser cabeça oca.
Lugar de língua que descansa
tem de ser no céu da boca.

146
Adeus aos ninhos.
No céu, uma revoada
de estorninhos.

147
Creio à beça:
aquele que morre
não vê a essa.

148
No relógio, tique-taques.
De madrugada, irritam
teus velhos achaques.

149

É para vocês crerem:
os insetos escutam
as plantas crescerem.

150
Na mente, entulho.
Pensamento cismado
é fonte de barulho.

151
Clara e gema
são, da natureza,
estratagema.

152
Não sou de fé,
eu não sei nadar.
Vou até onde dá pé.

153
Manhã; aclamei.
Ao longe escutava-se
o Brian May.

154
Não se trata de pátema.
Dependendo de quem vem,
é bem melhor o anátema.

155
Tenho o agora.
O resto é pensamento 
fazendo hora.

156
Retina 
cansada:
rotina.

157
Para minha cura,
não importa o mal,
drágeas de leitura.

158
Constato demais:
é bonito e sedutor
quem lê mais.

159
Três pontos: reticências.
Três exclamações:
excrescências.

160
Três pontos: reticências.
Três interrogações:
excrescências.

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